segunda-feira, maio 19, 2008

Obsessão

Eu estava quieto. Já tinha me decidido. Naquela noite, eu só ia sair com o pessoal do departamento, tomar umas cervejas, conversar sobre a nova secretária e discutir sobre o péssimo humor do meu chefe. Porém, meus planos foram desviados e como se estivesse procurando um caminho seguro de repente me visse de frente à um precipício: eram finos, compridos, cilíndricos e ligeiramente mais largos ao encontrarem a sola, tinham na base uma espécie de borracha para a proteção e eram vernizados – se fossem carros, diria que eram tunados- eram simplesmente encantadores, dignos de muito estilo e elegância. Aquele salto alto realmente tinha conseguido atrair minha atenção e me feito parar de pensar na hora de chegar em casa e assistir ao Gre-Nal na TV. Pensei comigo mesmo: “Chego mais perto, ou não?!”. Foi quando o Paulinho, aquele baixinho metido à besta, se intrometeu em meus devaneios e disse: “Quem sabe tu não vai falar com a morena, olha lá, ela ta até te encarando de volta!”. Me decidi.

Fui chegando cada vez mais perto, o bar estava cheio de gente, e quanto mais eu me aproximava, mais parecia que o ar ia acabando e que as pessoas à minha volta iam mergulhando sobre mim, me afogando, me fazendo descer. Mas já não tinha como voltar, estava perto demais, e qualquer mudança nos planos iria acarretar em desastre, na certa. Foi quando cheguei bem perto. Ela, no balcão, cruzou as pernas devagar e deu para ver com nítida perfeição aquele sapato, que a deixavam no mínimo uns 12 centímetros mais alta. Como eles eram charmosos, de uma finésse que me hipinotizava, não eram simples salto altos, eram pedestais de pedras preciosas que guardavam uma relíquia. Aquele era o embrulho perfeito, do presente perfeito.


Quando me dei por mim, estava na frente dela, olhando para seus pés e a frase indesejada soou tão inocente e desnuda quanto um sonho de criança: “Tu tens pés lindos!”. Ela me olhou e sorriu, pensei que foi ponto pra mim. Ela disse: “É a primeira vez que falam isso...Te senta.”. Dessa vez fui rápido e rasteiro: “O que está pensando em tomar?”. Ela, categórica: “Um dry Martini.”. Eu acompanhei: “Mais um conhaque, por favor.”.

Foram incontáveis conhaques e dry Martinis, até que trocamos telefone e combinamos de nos encontrarmos na sexta. Foi incrível, ela era sofisticada. Tudo nela lembrava essa palavra, seu modo de falar, os gestos que fazia, a posição dos cotovelos sobre o balcão e, indiscutivelmente, seus saltos altos do scarpin italiano assinado por Armani, combinando com a bolsa. Não pude parar de pensar nos assuntos inteligentes sobre os quais ela discutia muito bem; nos seus cabelos que eram tão indomáveis, não paravam de esvoaçar uma hora para o meu lado, outra hora contra mim; e na sensualidade do bico fino que deixava seus pés com aparência dos pés de uma jovem que aprendeu a mágica da sedução.

Nos encontramos na sexta, num pub novo da Padre Chagas. O lugar era muito luxuoso, à altura de tão exuberante companhia. Estava muito contente de ela ter chegado na hora combinada, mostrando sua eficiente pontualidade. Ela estava linda, um vestido cor de vinho, bem sugestivo para a noite que viria. Ah, e o sapato, era uma sapato branco com detalhes em dourado e vermelho, em sincronia com a roupa e os adereços que trazia no pescoço – enriquecendo a beleza do colo-, nos pulsos – que emolduravam uma cintura fina, escultural-, nos dedos – doces e misteriosos. A noite estava muito aconchegante, fazia um pouco de frio, dava pra sentir a brisa do inverno batendo no rosto e no cabelo. O batom escarlate começava a chamar a atenção para o enrubescer das bochechas, que se coravam cada vez mais com cada longo e delicado gole de vinho. Tudo nela, me lembrava os saltos. Ela mesma podia ser um salto: alta, magra, sensual, bem postada. Os sapatos a deixavam com ar de perigosa, dama fatal, segura, decidida, forte, corajosa, mas também delicada, feminina, suave. Começamos a conversar sobre trabalho – talvez o assunto mais eminente e com menos risco de não se ter o que falar. Ela trabalhava como gerente de uma loja de decoração de interiores, eu, como prestador de serviços publicitários a empresas. Ela ria ao contar sobre as peripécias com que topava durante o dia, já eu, nem lembro o que falei, apenas prestava atenção no quase imperceptível e afável balançar do bico do sapato batendo na perna da mesa. A noite foi passando, e com o adiantar da hora e da conversa que ficava desconexa, decidimos ir embora. Dei a ela uma carona. Nem sei direito onde a deixei, só sei que quando ela saia do carro dava para ouvir o bater dos sapatos na calçada daquela rua solitária, em que ecoavam os delirantes suspiros de seus saltos que me consentiam a vontade de sonhar com aquele estrepitar incansável.

Liguei no outro dia, convidando-a para sair novamente naquele sábado. Ela havia agradecido com incontestáveis elogios à noite que tínhamos passado juntos, disse ainda que havia sido muito amável, contudo, sair de novo seria impossível, uma vez que ela já tinha marcado compromisso importantíssimo e intransferível. Pediu desculpas e falou que ligaria assim que possível. Estava na cara. Era óbvio que aquela mulher deslumbrante, elegante, ímpar, nunca haveria de me retornar a ligação. Aliás, nem podia imaginar o que ela quereria comigo. Tinha outro, é, devia ter um namorado e brigado com ele quando nos conhecemos, agora, reconciliados, ela volta aos seus braços, finge que nada aconteceu, me esquece. Eu já devia saber, não me importo. Juro. A única pena que sinto é a de não poder mais ver seus saltos altos surrando o chão em que pisa. Como ela ficava adorável naqueles saltos. Devia ter uma coleção deles, infinitos pares. E eu não poderia admirar mais nenhum. Que falta eles me fazem.

Precisava parar de pensar nisso, e se ela realmente estivesse falando a verdade e tivesse um compromisso real, inadiável, de suma importância?! E se ela gostasse da minha companhia e só estivesse querendo fingir ser difícil. Mulheres têm disso.

Fui correr na Redenção. Não agüentava mais o barulho na minha cabeça dos saltos na calçada na noite em que a deixei em casa. Escutava, atento, às notícias esportivas que sucederam o clássico no Olímpico, um tanto triste pelo fato do meu Grêmio ter perdido e pelas repercussões ainda não terem por inteiro acabado. Estava atravessando o chafariz, em direção ao Buda, já me imaginando cruzando a Oswaldo e voltando para casa quando vejo ela. Ela corria também pela Redenção. Não, não pode ser ela. Impossível. Jamais que aquela dama de honrado glamour iria se expor ao correr na Redenção. Imagine só: ela toda suada, correndo, cara lavada, cabelo preso com um rabo de cavalo, já despencando pelos solavancos da corrida. Não era ela.

Mas era. Chegava mais perto, vinha em minha direção, estava com umas roupas largas e TÊNIS. Não, me negava a vê-la usando tênis. Aqueles pés não mereciam a prisão dos tênis. Era como tentar domar um animal selvagem, enjaulá-lo. Não podia ser a mesma mulher. Como?! Como irei encarar as meias de corrida, o tênis?! Podia até ser um desses caríssimos que se compra em lojas de shoppings ou do camelô do centro. Eu não admitiria. Estava ficando muito nervoso, percebi que suava frio. Um arrepio me subia pela espinha a cada vez que imaginava ser ela vindo para cá. Depois, olhava melhor e tinha a impressão de ter visto enganado, aí era como mergulhar numa piscina de água gelada depois do futebol. Como ela podia cometer tal usura? Um pecado, sim, um pecado. Uma mulher de seu porte, se deixar ver de tênis, numa corrida desproposital. Pensei: uma casa, um lar, filhos, e ela de pantufa, pijamas e roupão, andando para lá e para cá com uns chinelos velhos.

Parei tudo. Virei-me de costas para ela, comecei a correr de volta pelo caminho que havia seguido até então. Não é possível, como pode trocar por um tênis tão sem graça aqueles salto altos de seus scarpins tão atraentes?! Não consegui pensar em respostas. Segui pela João Pessoa até minha casa, contornando a Reitoria.

Ela me ligou algumas vezes mais, não a atendi, nem nunca mais voltei a lhe ligar.