domingo, novembro 16, 2008

Auto da Humanitânea – O Reencontro de Dinato e Belzebu.

Por aqueles dias, o inferno estava escaldante. Um mormaço forte subia do chão e deixava o ambiente cada vez mais quente. Nem os demônios suportavam imenso calor.
Nessas condições, muitos deles subiam um pouco e chegavam perto da terra. Dentre eles, estavam Belzebu e Dinato, que se encontravam mais uma vez:
- Quanta honra que me faz
Aqui, novamente encontrar
Amigo de longa data.
- Não me diga, mas que bom!
Nunca mais de ti ouvi falar
Da última vez que nos encontramos
Só lembro que foi em Portugal.
- Sim foi lá.
Era pelo ano de 1532.
Como vai o amigo,
Conte logo, não deixe para depois.
- Eu vou bem, obrigado.
Única pena que trago,
E da qual muito lamento,
É sobre esses tais aí de cima
Que ainda não se deram conta,
Não podem segurar nas mãos o tempo.
- Pois já que disse,
Eu também tenho notado.
Essa gente continua egoísta, gananciosa,
E, mesmo assim, não têm se encontrado.
- Sem contar que não percebem,
E não se deixam perceber,
Que estão cada vez mais sozinhos.
E desse mal eles hão de padecer.
Nesse momento, ouvem um barulho, de como quem anda rápido demais. São Qualquer Um e Ninguém, atrasados para não se sabe o quê, já perderam as contas. Só andam e seguem sem parar, querem mais trabalho e reclamam que não têm tempo pra aproveitar aquilo que seu dinheiro consegue comprar.
- Qualquer Um, me diga de uma vez,
Tu viste o mendigo na rua
Pedindo esmola sem freguês?
- Sim eu vi, até com dó do pobre eu fiquei.
E quanto a ti, Alguém amigo,
Não vai dar uma ajuda a esse mendigo?

- Veja só, Dinato.
Qualquer Um vê quem precisa de ajuda,
Até pena sente, só não diz se sente culpa.
Escreve como antes.
- Sim Belzebu, escrevo.
Mas Alguém ajuda o mendigo, ou só segue adiante?

- Qualquer Um, diga-me uma coisa
Na escola tu chegaste a aprender
O que era ação ruim e o que era ação boa?
- Vivendo aprendi tudo isso que me fala.
Ainda hoje sei o que é,
Como faz e do que se trata.
- Olhe só, sou homem feito e homem forte
E nem sei se consigo pôr o pouco que sei em prática.
Aprecio tua atitude e digo que tens sorte.

- Ouviste, Dinato? Mais uma vez te digo
Qualquer Um sabe o que é certo.
- E Alguém sabe usar de modo correto?

Assim como vieram correndo, Qualquer Um e Alguém se vão depressa. Dão lugar a Quando e a Quem. Ambos parecem estar bem preocupados com alguma coisa, vai ver nem sabem com o quê. A vida lhes ensina que devem estar aflitos sempre, o motivo? Não importa, só querem mostrar que têm algo importante para pensar.
- Quando, preciso que me respondas.
Me achas sincero ou falso por completo?
- Antes disso, responda à minha pergunta,
Tu consegues ser sincero o tempo todo,
Ou só o faz se não há censura?
- Acho que só ajo se não tenho medo
Sei que, muitas vezes, devo ser um tanto infiel
Às verdades que a vida mostra,
Às pessoas à minha volta.
Mas se assim não fosse, estaria minha parede cheia de troféus?
E tu, te achas sincero ou és pessoa torta?
- Pois lhe digo sem vergonha,
Sou sincero nas vezes que posso.
O resto não importa.

- Anda de uma vez, Dinato,
Não perca o fio da história
- Quem é sincero ou falso por completo?
- Não seja preguiçoso, use tua memória.
Ponhas isso no papel e não te enroles,
Quem é sincero apenas Quando pode.

- Quem, outra coisa me responda,
Dessa vez seja franco,
Ligas para as aparências,
Vives nesse engano?
- Eu não ligo para as aparências,
Só de vez em quando.
E tu, por que tão rápido te calas?
Não vais complementar a minha fala?
- Acontece que estou passando por crise.
Não sei se fico ou se me vou.
Preciso de ajuda, coisa boa no mundo
Nada restou.

- Escreve mais essa e depois nos vamos.
- Belzebu, não sei se bem entendi.
A trama se enreda e eu já me esqueci,
Pouco me lembro, e à muita custa.
Quem não liga para as aparências
Quando precisa de ajuda?
- Dinato, pois lhe digo mais um pouco,
Veja se comigo concordas,
Essa gente aí de cima
Já quase não se importa
Com nada nem com ninguém
Esquecem que, se pararem aqui embaixo,
Não lhes salvam seus vinténs.
- Desse tipo já vi muitos,
Até digo que os conheço bem.
Esse mal não deve ter cura
Se tem, esse povo não procura.
Só sei que enforcados pela tristeza,
Irão chorar ao receberem as sentenças
De morte, sofrimento e amargura,
Se na terra não fizerem algo que lhes valha
Muito mais do que suas infames fortunas.
Já cansados de tanto dizer sem ter nada para falar, Dinato e Belzebu voltam para as baixuras do inferno.

segunda-feira, outubro 27, 2008

Incontável

O céu já ficava levemente avermelhado, e alguns tons de laranja e amarelo tomavam conta da noite que deixava espaço para a clareza de mais um belo dia de verão que amanhecia na praia deserta.
Lá, ao lado de uma grande pedra que lembrava as formas de arbustos de hortência, apenas um chalé de madeira enfeitava a paisagem. Por entre coqueiros e areia, ele se escondia. Eram apenas um banheiro pequeno e modesto, uma varanda cheia de flores e objetos talhados em madeira, uma cozinha com uma mesa, cadeiras, pia e um fogão à lenha, uma pequena sala para recepcionar as poucas visitas que até ali chegavam e um quarto com uma grande janela com vista para o interior da ilha; tudo isto emoldurado por tábuas cruas de madeira escura. Já era possível perceber o reflexo da luz que batia n’água do mar atravessando as frestas das paredes do casebre.
A taça de cristal, iluminada por um feixe de luz, já tinha seu interior repleto de cores diversas, o champagne que restava nela já não borbulhava mais, e a garrafa, ao lado, ficava mais quente, em oposição à baixa temperatura do balde de gelo onde se encontrava na noite anterior.
Uma flor lilás prendia seus cabelos negros encaracolados. O vestido vermelho, de sempre, a deixava de seios fartos, cintura fina, corpo torneado. Um corte lateral que ia do tornozelo até um pouco acima do joelho deixava aparecendo suas pernas bronzeadas e um tanto grossas. Uma flor violeta enfeitava a mesa da cozinha, na sala estavam, sobre os sofás, as capas bordadas à mão, na parte de fora, uma tocha iluminava a alvenaria da parte frontal da casa. Podia-se sentir o cheiro forte de tempero usado para o molho por todo o recinto. Em uma caixa de isopor estavam três garrafas de champagne envoltas por muitos cubos de gelo.
Ele parecia um pouco desajeitado, a camisa aberta e a bermuda pareciam deixar-lhe desconfortável. O cabelo loiro bem aparado, os olhos azuis e a fragilidade de seu corpo não combinavam com os chinelos de tiras largas que usava. O buquê cheio de vida colorida que trazia nas mãos para lhe dar de presente, acabaria na mesa ao lado dos pratos do jantar.
Sons de conversas inconseqüentes e rasas tomavam conta do ambiente por alguns momentos. O tilintar dos talheres era, via de regra, o ruído mais escutado naquela cozinha. Às vezes, se ouviam elogios aos pratos servidos. Mãos trêmulas, olhos inquietos, pensamentos escondidos e bocas ansiosas.
Os copos brindavam enquanto um vento quente anunciava a noite de calor que se aproximava. As garrafas rapidamente se esvaziavam.
Tudo parecia menos monótono, a vida, mais real, os sons, mais fortes, as cores, mais brilhantes, as sensações, mais intensas. Ao mesmo tempo, nada precisava fazer sentido, tudo se tornava resumido pelo momento. A vontade de que nada se movesse nem que os minutos passassem era visível nas rápidas e tímidas trocas de olhares.
O que antes estava parado, agora era inquietante. Sede, desejo, ânsia de ter o outro agarrado ao seu corpo. Mãos perdidas, olhos fechados, bocas se queimando. Incansáveis, vorazes, animais em choque buscavam a loucura. Infinito prazer.
O lençol bagunçado na cama, os travesseiros no chão, a janela aberta. Uma calcinha preta rendada se perdia na pequena imensidão possível apenas para aquele quarto. A camisa solta na sala já não o deixava mais desconfortável como no início da noite. O clarão da lua, que entrava passando pelas cortinas, amenizava a escuridão e deixava possível ver os sapatos à beira da cama, os corpos atirados sobre o colchão faziam o desenho do perfil de uma concha do mar. Nem os rostos, ainda suados, não mostravam toda a satisfação que sentiam. Os cabelos bagunçados eram um emaranhado de palavras maliciosas e carícias desmedidas. As bocas avermelhadas, que agora descansavam, permaneciam caladas depois de incontáveis juras de amor e de coragem que ambos teimavam em continuar a dizer. As mãos paradas já não mostravam a pressa e a gana do início da noite. Carinhos fortes cediam espaço para calmos roçar de pernas e de braços.
As costas arranhadas manchavam com pontos vermelhos o lençol azul claro, formando um contraste de cores que lembravam os corais de águas rasas em alto mar.
A maré descia, o mar acalmava-se, as ondas iam e vinham vagarosamente, cansadas do turbilhão de movimentos da madrugada.
Um susto.
O dia começava a trazer sua brisa, seu vento frio. As nuvens encobriam o céu contaminado pela poluição. Não se via o sol, nem cor alguma. Agora tudo se resumia a uma escala em cinza e preto que remetia à angústia e à solidão. Barulhos, agora já não mais da praia e do oceano, mas sim das obras, das ruas, do trabalho, do caos.
Ao lado de sua cama vazia, havia um bidê. Nele, estavam todos os remédios para deixá-la sobreviver à dor. Na parede, um relógio com as pilhas acabadas marcava a hora exata de sua morte.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Remetente

Conto a partir de uma notícia de jornal: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL754115-5602,00-CARTEIRO+ESCONDE+MAIS+DE+MIL+CARTAS+NA+ALEMANHA.html


Ter achado aquela lingerie preta ao lado de um chicote e uma máscara ao fundo do armário da mulher era algo que realmente não precisava ter acontecido. Luiz chorava desesperadamente diante do corpo do homem, talvez porque pensasse que ter matado o vizinho fora uma atitude extrema. Nunca chegou a levar a sério o fato de que ela pudesse, um dia, chegar a lhe trair.
Bega era meiga, simples, mulher de poucos caprichos, boa dona de casa. Luiz quase não tinha tempo para almoçar; seu trabalho lhe consumia quase todas as horas de sol do dia e, à noite, já cansado, deitava-se cedo, acordava cedo; nos finais de semana saia pra jogar futebol, fazia um churrasco, trabalhava para adiantar relatórios para segunda, e, se não estivesse fazendo nada disso, estaria descansando já que as semanas eram exaustivas.
Mas, não havia porque chorar, nem porque perder a calma. Tinha que esconder o corpo, pegar suas malas e fugir para Innsbruck, cidade austríaca onde estavam morando seus avós. Por outro lado, deixar a vida que tinha conseguido montar não era tarefa fácil. Deixar o trabalho, os amigos, sua casa, a reputação de bom-moço, da qual sempre se orgulhara tanto, e abandonar Bega. Coitada da menina, quando criança, morava em um bairro pobríssimo do subúrbio da cidade, conhecera Luiz em uma entrevista de emprego: no currículo dele constava programador de sistemas, no dela, auxiliar de secretariado. Luiz a achava discreta, simpática, bem arrumada (mesmo pertencendo a uma classe social baixa) e no seu rosto havia um ar servil que lhe chamava a atenção. Convidou-a para sair algumas vezes, pouco tempo depois ela estava morando em sua casa. Luiz gostava de sua companhia, do tempero que botava no feijão, das torradas quentes de manhã e do chinelo à beira da cama à noite. Ele não entendia o porquê daquilo tudo, sempre lhe comprou os melhores presentes, gostava de vê-la sempre bem vestida e por isso lhe comprava as melhores roupas. O anel de noivado era de rubis!
Agora, olhando para aqueles olhos já sem fio de vida, lembra de como foi ter pegado o machado já com intuito de matá-lo, ter se dirigido até a garagem – a mesma garagem fria e úmida em que os vira juntos –, esperar que ele saísse do carro e lhe golpear entre o crânio e as costas. Pôde até sentir que cortava sua coluna, teve que dispor de mais força. Imóvel, o cadáver nem havia visto o rosto daquele que o impedira de ver Bega mais uma vez. Menos mau que Luiz não havia a encontrado durante todo o dia de hoje e de ontem, certamente perderia sua coragem.
Jogou o corpo da ponte, entrou no carro e não olhou para trás. Entre os bancos da frente, estava o lenço que Bega usou no pescoço quando ele lhe dera um soco na nuca, ele tinha lhe avisado para nunca mexer nas suas coisas. Sentira saudades dela nesse momento. Se não tivesse ido procurar sua gravata no armário dela, talvez nunca descobrisse aquela lingerie, ou aquele chicote, ou aquela máscara. Lingerie, chicote, máscara. Contudo, o pior fora ter encontrado os dois se beijando e caindo sobre a mesa da garagem da casa do vizinho.
Não era justo, pelo menos não para ele. Mais injusto - dessa vez com Bega, talvez, fosse que ele nunca haveria de encontrar a carta em forma de verso que ela lhe escrevera um dia antes de tudo acontecer:
“Luiz,
Quem sabe um dia me olhes,
Quem sabe, um dia possas reparar em mim.
Tenho sentimentos que não sentem por ti,
Olhos que não olham pra ti,
Pensamentos que não pensam em ti.
Há tempo, decidi não dar à dor
Uma vida perdida que tive.
Uma chance tu me roubara,
Nunca, nem sequer tentara
Por mim dedicar algo que valha
Um tanto mais que teus planos.
Hoje, fujo dessa farsa
Não quero de ti nada
Ódio, desprezo ou, agora, amor.
Só espero que consigas,
Ao menos uma vez na vida,
Perceber que há no mundo
Muito mais do que tu te propões.”

segunda-feira, setembro 15, 2008

Quando a sombra não se move, os olhos saltam.

Essa história (ou estória, como diria Guimarães Rosa) foi um "presente" que o Pedro me deu.

Estava no calçadão de Ipanema. Graças a Deus, as aulas haviam acabado. Eu nunca fui um exemplo de bom aluno, mas também, nunca fui relapso quanto aos assuntos escolares. Era um menino magrinho, com enormes cabelos encaracolados. Eu não gostava muito do meu cabelo, mas mamãe sempre disse que era legal e eu sempre acreditei nela. Naquele dia, o sol estava muito forte, e eu era capaz de sentir minha roupa queimando minha pele. A água do Guaíba conseguia amenizar um pouco a sensação de caldeira que pairava sobre Porto Alegre, mas não era suficiente.
Papai sempre me levava para passear após chegar em casa. Na época, eu não entendia muito bem o porquê de ele ter que trabalhar vestindo aquelas roupas: um terno preto, camisa, gravata e um sapato que deixava o pé dele parecendo uma prancha de surfe. Sempre quando ele chegava, eu usava os gigantes pés dele como apoio, ficava na ponta dos meus, e papai me carregava por toda a casa. Depois disso ele vestia uma camisa verde com flores coloridas, um calção folgado, um boné. Colocava minha bicicleta que ganhei de natal no carro e íamos até o calçadão.
Espantado, reparei que não havia uma viva alma naquele dia em frente ao lago. Meu lugar preferido para brincar estava vazio, pela primeira vez. No entanto, eu achava tudo muito parado e não muito convidativo. Ninguém pra brincar comigo, a não ser papai. Ele me divertia, mas não conseguia ficar muito tempo agachado na areia fazendo garagens para os meus carrinhos, ele sempre dizia que os joelhos lhe doíam muito, que sentia as costas. Normalmente, eu não me importava, pois todo o pessoal de Ipanema se encontrava ali para podermos montar nossos super estacionamentos e fazermos corridas de bicicletas mega velozes para vermos quem era mais rápido. Não nesse dia. Não naquele momento. Eu me sentia bem solitário, até pensei que ter minha irmã por perto poderia ser uma boa idéia.
Sombra sozinha, areia sozinha, bicicleta sozinha, pai sozinho, eu sozinho. Lago sem graça, sol sem graça, brinquedos sem graça, eu sozinho e sem graça. Queria muito ir embora. Queria mamãe, minha casa. Papai não parava de ler aquele jornal. Jornais me pareciam muito desinteressantes naquela época, não que hoje tenham mudado muito de perfil para mim. Por outro lado, não queria magoar papai pedindo para ir para casa tão cedo. Os minutos se arrastavam, nem os segundos, se quer, pareciam passar rapidamente. Nada se movia, tudo era um quadro estático que me aborrecia a cada imóvel vento que batia no meu cabelo – o que o deixava cada vez mais suado, mais bagunçado, mais em pé.
Foi ai, em um instante que precedeu o choro da mágoa, que percebi uma criança se aproximando. Ninguém pode saber o quão feliz eu estava! Sim, um companheiro para montar o clube de luta! Talvez fosse uma menina querendo brincar de casinha, geralmente essa idéia não me alegraria, mas naquele momento não importava, estava, verdadeiramente, feliz. Olhei de novo, não parecia ser uma menina. Olhei mais uma vez: não conhecia o menino que se aproximava de mim. Fui em direção ao papai, talvez ele pudesse me ajudar, reconhecê-lo, me contar que ele era um vizinho novo que acabava de chegar no bairro. Imaginei como seria legal ter um novo amigo. Quem sabe, ele poderia estudar no meu colégio! Ser da minha turma! Será que ele gostava de futebol?
De repente, fixei bem meus olhos naquela figurinha: era baixinho, um pouco gordo. Poderia servir para brincar de luta. Mas ele parecia ser mais velho, mesmo não tendo minha estatura. Bom, poderia servir para cavarmos tubos subterrâneos. Fitei-o novamente, ele vinha guiando algo, puxando-o por um cordão. Poderia ser um caminhão de cimento. Na medida em que o pequeno ser se aproximava, mais confuso eu ficava quanto a sua duvidosa procedência! Parecia ser, mas não podia...
Por um segundo, não tive dúvidas, ele se aproximou e antes que pudesse falar qualquer coisa eu logo disse “Papai, olha só, um gnomo com um cachorro gnomo!”.Papai me puxou forte pela mão, pediu desculpas, completamente envergonhado, ao anão com seu bassê.

segunda-feira, maio 19, 2008

Obsessão

Eu estava quieto. Já tinha me decidido. Naquela noite, eu só ia sair com o pessoal do departamento, tomar umas cervejas, conversar sobre a nova secretária e discutir sobre o péssimo humor do meu chefe. Porém, meus planos foram desviados e como se estivesse procurando um caminho seguro de repente me visse de frente à um precipício: eram finos, compridos, cilíndricos e ligeiramente mais largos ao encontrarem a sola, tinham na base uma espécie de borracha para a proteção e eram vernizados – se fossem carros, diria que eram tunados- eram simplesmente encantadores, dignos de muito estilo e elegância. Aquele salto alto realmente tinha conseguido atrair minha atenção e me feito parar de pensar na hora de chegar em casa e assistir ao Gre-Nal na TV. Pensei comigo mesmo: “Chego mais perto, ou não?!”. Foi quando o Paulinho, aquele baixinho metido à besta, se intrometeu em meus devaneios e disse: “Quem sabe tu não vai falar com a morena, olha lá, ela ta até te encarando de volta!”. Me decidi.

Fui chegando cada vez mais perto, o bar estava cheio de gente, e quanto mais eu me aproximava, mais parecia que o ar ia acabando e que as pessoas à minha volta iam mergulhando sobre mim, me afogando, me fazendo descer. Mas já não tinha como voltar, estava perto demais, e qualquer mudança nos planos iria acarretar em desastre, na certa. Foi quando cheguei bem perto. Ela, no balcão, cruzou as pernas devagar e deu para ver com nítida perfeição aquele sapato, que a deixavam no mínimo uns 12 centímetros mais alta. Como eles eram charmosos, de uma finésse que me hipinotizava, não eram simples salto altos, eram pedestais de pedras preciosas que guardavam uma relíquia. Aquele era o embrulho perfeito, do presente perfeito.


Quando me dei por mim, estava na frente dela, olhando para seus pés e a frase indesejada soou tão inocente e desnuda quanto um sonho de criança: “Tu tens pés lindos!”. Ela me olhou e sorriu, pensei que foi ponto pra mim. Ela disse: “É a primeira vez que falam isso...Te senta.”. Dessa vez fui rápido e rasteiro: “O que está pensando em tomar?”. Ela, categórica: “Um dry Martini.”. Eu acompanhei: “Mais um conhaque, por favor.”.

Foram incontáveis conhaques e dry Martinis, até que trocamos telefone e combinamos de nos encontrarmos na sexta. Foi incrível, ela era sofisticada. Tudo nela lembrava essa palavra, seu modo de falar, os gestos que fazia, a posição dos cotovelos sobre o balcão e, indiscutivelmente, seus saltos altos do scarpin italiano assinado por Armani, combinando com a bolsa. Não pude parar de pensar nos assuntos inteligentes sobre os quais ela discutia muito bem; nos seus cabelos que eram tão indomáveis, não paravam de esvoaçar uma hora para o meu lado, outra hora contra mim; e na sensualidade do bico fino que deixava seus pés com aparência dos pés de uma jovem que aprendeu a mágica da sedução.

Nos encontramos na sexta, num pub novo da Padre Chagas. O lugar era muito luxuoso, à altura de tão exuberante companhia. Estava muito contente de ela ter chegado na hora combinada, mostrando sua eficiente pontualidade. Ela estava linda, um vestido cor de vinho, bem sugestivo para a noite que viria. Ah, e o sapato, era uma sapato branco com detalhes em dourado e vermelho, em sincronia com a roupa e os adereços que trazia no pescoço – enriquecendo a beleza do colo-, nos pulsos – que emolduravam uma cintura fina, escultural-, nos dedos – doces e misteriosos. A noite estava muito aconchegante, fazia um pouco de frio, dava pra sentir a brisa do inverno batendo no rosto e no cabelo. O batom escarlate começava a chamar a atenção para o enrubescer das bochechas, que se coravam cada vez mais com cada longo e delicado gole de vinho. Tudo nela, me lembrava os saltos. Ela mesma podia ser um salto: alta, magra, sensual, bem postada. Os sapatos a deixavam com ar de perigosa, dama fatal, segura, decidida, forte, corajosa, mas também delicada, feminina, suave. Começamos a conversar sobre trabalho – talvez o assunto mais eminente e com menos risco de não se ter o que falar. Ela trabalhava como gerente de uma loja de decoração de interiores, eu, como prestador de serviços publicitários a empresas. Ela ria ao contar sobre as peripécias com que topava durante o dia, já eu, nem lembro o que falei, apenas prestava atenção no quase imperceptível e afável balançar do bico do sapato batendo na perna da mesa. A noite foi passando, e com o adiantar da hora e da conversa que ficava desconexa, decidimos ir embora. Dei a ela uma carona. Nem sei direito onde a deixei, só sei que quando ela saia do carro dava para ouvir o bater dos sapatos na calçada daquela rua solitária, em que ecoavam os delirantes suspiros de seus saltos que me consentiam a vontade de sonhar com aquele estrepitar incansável.

Liguei no outro dia, convidando-a para sair novamente naquele sábado. Ela havia agradecido com incontestáveis elogios à noite que tínhamos passado juntos, disse ainda que havia sido muito amável, contudo, sair de novo seria impossível, uma vez que ela já tinha marcado compromisso importantíssimo e intransferível. Pediu desculpas e falou que ligaria assim que possível. Estava na cara. Era óbvio que aquela mulher deslumbrante, elegante, ímpar, nunca haveria de me retornar a ligação. Aliás, nem podia imaginar o que ela quereria comigo. Tinha outro, é, devia ter um namorado e brigado com ele quando nos conhecemos, agora, reconciliados, ela volta aos seus braços, finge que nada aconteceu, me esquece. Eu já devia saber, não me importo. Juro. A única pena que sinto é a de não poder mais ver seus saltos altos surrando o chão em que pisa. Como ela ficava adorável naqueles saltos. Devia ter uma coleção deles, infinitos pares. E eu não poderia admirar mais nenhum. Que falta eles me fazem.

Precisava parar de pensar nisso, e se ela realmente estivesse falando a verdade e tivesse um compromisso real, inadiável, de suma importância?! E se ela gostasse da minha companhia e só estivesse querendo fingir ser difícil. Mulheres têm disso.

Fui correr na Redenção. Não agüentava mais o barulho na minha cabeça dos saltos na calçada na noite em que a deixei em casa. Escutava, atento, às notícias esportivas que sucederam o clássico no Olímpico, um tanto triste pelo fato do meu Grêmio ter perdido e pelas repercussões ainda não terem por inteiro acabado. Estava atravessando o chafariz, em direção ao Buda, já me imaginando cruzando a Oswaldo e voltando para casa quando vejo ela. Ela corria também pela Redenção. Não, não pode ser ela. Impossível. Jamais que aquela dama de honrado glamour iria se expor ao correr na Redenção. Imagine só: ela toda suada, correndo, cara lavada, cabelo preso com um rabo de cavalo, já despencando pelos solavancos da corrida. Não era ela.

Mas era. Chegava mais perto, vinha em minha direção, estava com umas roupas largas e TÊNIS. Não, me negava a vê-la usando tênis. Aqueles pés não mereciam a prisão dos tênis. Era como tentar domar um animal selvagem, enjaulá-lo. Não podia ser a mesma mulher. Como?! Como irei encarar as meias de corrida, o tênis?! Podia até ser um desses caríssimos que se compra em lojas de shoppings ou do camelô do centro. Eu não admitiria. Estava ficando muito nervoso, percebi que suava frio. Um arrepio me subia pela espinha a cada vez que imaginava ser ela vindo para cá. Depois, olhava melhor e tinha a impressão de ter visto enganado, aí era como mergulhar numa piscina de água gelada depois do futebol. Como ela podia cometer tal usura? Um pecado, sim, um pecado. Uma mulher de seu porte, se deixar ver de tênis, numa corrida desproposital. Pensei: uma casa, um lar, filhos, e ela de pantufa, pijamas e roupão, andando para lá e para cá com uns chinelos velhos.

Parei tudo. Virei-me de costas para ela, comecei a correr de volta pelo caminho que havia seguido até então. Não é possível, como pode trocar por um tênis tão sem graça aqueles salto altos de seus scarpins tão atraentes?! Não consegui pensar em respostas. Segui pela João Pessoa até minha casa, contornando a Reitoria.

Ela me ligou algumas vezes mais, não a atendi, nem nunca mais voltei a lhe ligar.

segunda-feira, abril 28, 2008

Divã

Poderia ser uma cena memorável, digna de filmes épicos, com meia-luz, um piano ao fundo, e um pano histórico invejável: uma grande missão ou ainda uma grande façanha; contudo, isso não é como a gente fantasia nem todas as nossas fantasias são, na realidade, objeto de desejo real nosso. Tu podes te estar perguntando: “Por que começar uma autobiografia assim?!”, realmente...nem eu poderia explicar. São muitas as razões pelas quais podemos criar, mas nenhuma pode ser apreendida por inteiro.


Gostaria de que agora todos fossem abduzidos para dentro dessa história, como fazem os grandes escritores, sim, os grandes Machado, Veríssimo, Cabral de Melo Neto, Cecília, Lygia, Millôr, Saramago...demasiado cedo para que isso aconteça. Me contento com tua mínima atenção e com tua mínima observação.


Quando eu tinha dois anos, meus pais se enganaram quanto à quantidade correta de leite e água a serem misturados para sanar a falta de leite materno, alguns dizem que por isso fiquei assim.


Morei em diversas cidades, e acho que mais criei brigas do que amigos, por outro lado, aprendi mais do que talvez eu acredite. Recentemente, morando sem meus pais, pude notar diversas coisas que só noto por essa condição (na realidade, sei que essa experiência é uma das mais importantes da vida das pessoas, esse afastamento – premeditado, ou não – vem a ser como um convite a viver a sua vida inteiramente, e não com se ela fosse regida ou observada de perto por outras pessoas). Costumo contar aos meus amigos, e se lhe conto é por que lhe tenho como amigo, uma frase que pode resumir toda essa nova fase que começo a ingressar: quando estava em casa, minha mãe sempre me pedia para que tirasse o pó dos móveis e eu lhe respondia que não precisava tirar o pó disso todos os dias; agora já morando sozinha vejo uma acumulação de poeira em meus móveis – que não identifico ao certo de onde venha – que pede minha atenção e higiene diária. Pois é, e assim vai.


Apesar de que, acho que o mais difícil é ter a coragem e a força de encarar os desafios, sejam eles pequenos e corriqueiros ou grandes e dispendiosos. Saber se sair bem de situações, podes acreditar em mim, nem sempre é muito fácil, e exige destreza, precisão, habilidade e um pouco de safadeza. Trabalho e estudo, e me sobra um tempo de tomar umas e outras, quando a grana permite que isso se faça. Não, tu deves estar pensando que eu odeio isso; claro que não! Eu amo o que faço, aceito minha condição, e tento fazer tudo da melhor maneira possível. Esse é um dos melhores jeitos de se viver (e lembre-se, às vezes, o conformismo se transforma na melhor forma de protesto). Ter um objetivo é planejar, é suor, é luta. E sei do que estou falando.


Ao andar pela rua, quando chove no teu rosto, tu não acha que é maravilhoso ter a chance de estar ali, exatamente naquele lugar, recebendo incondicionalmente aquela gota de chuva, enquanto todos estão ao teu redor, sem muito ter ligação a ti, mas sim, sempre ali, prontos pra qualquer tipo de ação. Isso é vida, isso é viver, saber que temos a oportunidade de usufruir. Agora não me venhas indagar como isso fará diferença para ti, por que o que pretendo te mostrar é que justamente não há necessidade em ser necessário, há necessidade de ser. Se todos nós fôssemos um pouco mais, tentássemos um pouco mais, conseguíssemos um pouco mais...


Sei de onde vim, sei (mais ou menos) quem sou, sei o suficiente para saber que sou muitas, e todas essas que vivem em mim são muito mais do que um simples fato pode mostrar. A complexidade que envolve o ser humano é digna de discussões socráticas, ou de roteiros indianos.


Tive boas e más experiências na minha vida, entretanto, o período de escola... ahh... a escola. Deus meu, leitor, tu não trazes lembranças dantescas de tua escola? Eu detestava todo seu funcionamento, sua hipocrisia e sua falta de companheirismo. Tudo na escola é busca de afirmação individual. Acho melhor parar por aqui... o que me alegra é pensar que essa era uma das poucas escolas que há no mundo todo, e que muitas outras podem ser diferentes.


E por que não, agora, trazer uma reflexão futurista? Minha vó, meu caro, diz que quando criança ela acreditava que no século XXI toda a comida seria em ! Dá pra acreditar, imaginem comer o delicioso tortéi da nona em pó! Graças a Deus isso não aconteceu. No entanto, quanto ao nosso futuro, ao teu, ao meu, ao do teu filho e ao do teu vizinho!? Não lhe parece estranho pisar a areia movediça? Eu gosto de pensar que ainda estarei aqui quando eu puder desfrutar de uma casinha e de uma janela. Posso até pensar em desaposentar a máquina de escrever da mãe, ou usar uma pena que meu vô me deu certa vez. Pensar no futuro é pensar em nossas realizações, nossos desejos. Já pensou? Talvez no futuro tu possas me ler de novo, com mais atenção, mais questionamentos e mais respeito, e contará, orgulhoso, que conversei contigo. Eu, certamente, terei mais objetivos a alcançar, mais metas, mais lutas, mais percalços, por outro lado, espero também ter mais coragem, mais segurança, mais armas e mais sabedoria. Enquanto à cena memorável, bem...essa, podemos deixar pra lá.

terça-feira, abril 15, 2008

Temos, realmente, poder de influenciar?

Fico pensando sobre nosso papel social. Não como cidadãos individuais, mas como massa social. Será que realmente podemos nos encaixar nos moldes sociais e usá-los como bem quisermos? E quanto a nossa liberdade? Temos o poder de influenciar nosso contexto social?

As teorias mais recentes de comunicação afirmam a pouca manipulação que os meios de comunicação em massa são capazes de exercer. As correntes pós Guerra Fria identificam o receptor e esse mostra que os resultados esperados pela "manipulação" nem sempre estão presentes nas suas idéias. Ótimo, não somos manipulados! Uma vitória para quem afirma que a liberdade deve ser respeitada e que temos o direito de formarmos nossa opinião.
Com certeza somos capazes - até demais - de formarmos nossa opinião, contudo, será que podemos expor todos os nossos intuitos e transformar nossas aflições em possibilidade real de superação de expectativas?

A sociedade não pode ser formada pelo indivíduo. Segundo Niklas Luhmann, é a comunicação que molda o meio, retificando toda a análise social feita a partir do ponto de vista antropofórmico. A princípio parece estranho ver a sociedade não pelo social, mas pelo ponto de vista extra-humano. A realidade nos mostra que a opinião pública não implica diretamente nas aspirações comum dos conscientes, mas sim em formas pré-moldadas que nos foram trazidas desde o início de nossa sociedade e que são controladas pelo sistema. Ou seja, a opinião pública é o reflexo daquilo qe o sistema espera que façamos.

Então, como poderemos influenciar o meio em que vivemos, já que, se pensarmos bem, não somos nada a mais do que seres orgânicos que evoluíram a tal ponto de se acharem donos de suas ações e livres o suficiente para acharmos que podemos realmente ter alguma significância em todo o ambiente natural que nos cerca. Agora, me digam, o que devemos fazer? Corromper-se e aderir a tudo o que nos é "jogado" todo o dia, ou procurarmos o que pode de verdade provocar alguma mudança?

Não sei bem, mas o caminho mais seguro parece ser usar os mecanismos que o sistema disponibiliza para encontrarmos o que nos faz bem, a tal de felicidade sobre a qual ouvimos falar.
Eu sou feliz.
Gosto do lugar de onde estou, das pessoas com as quais estou e do que estou fazendo aqui (se bem que eu seria mais feliz se pudesse assistir a um show da Janis - risos).

O mundo é um cofre gigante, e nós somos suas moedas. As mudanças socias são frutos econômicos, bem como as mudanças culturais, políticas. Há alguns lapsos que fogem desse padrão. Contudo, parece triste admitir, só que não somos muito mais do que animais - nem sempre racionais - que fazem a economia girar.

Já estou acostumada a ser tão pragmática. Não me crucifiquem.
O assunto pode ser aprofundado mais adiante.

Boa noite e até quando o dinheiro deixar!