domingo, novembro 16, 2008

Auto da Humanitânea – O Reencontro de Dinato e Belzebu.

Por aqueles dias, o inferno estava escaldante. Um mormaço forte subia do chão e deixava o ambiente cada vez mais quente. Nem os demônios suportavam imenso calor.
Nessas condições, muitos deles subiam um pouco e chegavam perto da terra. Dentre eles, estavam Belzebu e Dinato, que se encontravam mais uma vez:
- Quanta honra que me faz
Aqui, novamente encontrar
Amigo de longa data.
- Não me diga, mas que bom!
Nunca mais de ti ouvi falar
Da última vez que nos encontramos
Só lembro que foi em Portugal.
- Sim foi lá.
Era pelo ano de 1532.
Como vai o amigo,
Conte logo, não deixe para depois.
- Eu vou bem, obrigado.
Única pena que trago,
E da qual muito lamento,
É sobre esses tais aí de cima
Que ainda não se deram conta,
Não podem segurar nas mãos o tempo.
- Pois já que disse,
Eu também tenho notado.
Essa gente continua egoísta, gananciosa,
E, mesmo assim, não têm se encontrado.
- Sem contar que não percebem,
E não se deixam perceber,
Que estão cada vez mais sozinhos.
E desse mal eles hão de padecer.
Nesse momento, ouvem um barulho, de como quem anda rápido demais. São Qualquer Um e Ninguém, atrasados para não se sabe o quê, já perderam as contas. Só andam e seguem sem parar, querem mais trabalho e reclamam que não têm tempo pra aproveitar aquilo que seu dinheiro consegue comprar.
- Qualquer Um, me diga de uma vez,
Tu viste o mendigo na rua
Pedindo esmola sem freguês?
- Sim eu vi, até com dó do pobre eu fiquei.
E quanto a ti, Alguém amigo,
Não vai dar uma ajuda a esse mendigo?

- Veja só, Dinato.
Qualquer Um vê quem precisa de ajuda,
Até pena sente, só não diz se sente culpa.
Escreve como antes.
- Sim Belzebu, escrevo.
Mas Alguém ajuda o mendigo, ou só segue adiante?

- Qualquer Um, diga-me uma coisa
Na escola tu chegaste a aprender
O que era ação ruim e o que era ação boa?
- Vivendo aprendi tudo isso que me fala.
Ainda hoje sei o que é,
Como faz e do que se trata.
- Olhe só, sou homem feito e homem forte
E nem sei se consigo pôr o pouco que sei em prática.
Aprecio tua atitude e digo que tens sorte.

- Ouviste, Dinato? Mais uma vez te digo
Qualquer Um sabe o que é certo.
- E Alguém sabe usar de modo correto?

Assim como vieram correndo, Qualquer Um e Alguém se vão depressa. Dão lugar a Quando e a Quem. Ambos parecem estar bem preocupados com alguma coisa, vai ver nem sabem com o quê. A vida lhes ensina que devem estar aflitos sempre, o motivo? Não importa, só querem mostrar que têm algo importante para pensar.
- Quando, preciso que me respondas.
Me achas sincero ou falso por completo?
- Antes disso, responda à minha pergunta,
Tu consegues ser sincero o tempo todo,
Ou só o faz se não há censura?
- Acho que só ajo se não tenho medo
Sei que, muitas vezes, devo ser um tanto infiel
Às verdades que a vida mostra,
Às pessoas à minha volta.
Mas se assim não fosse, estaria minha parede cheia de troféus?
E tu, te achas sincero ou és pessoa torta?
- Pois lhe digo sem vergonha,
Sou sincero nas vezes que posso.
O resto não importa.

- Anda de uma vez, Dinato,
Não perca o fio da história
- Quem é sincero ou falso por completo?
- Não seja preguiçoso, use tua memória.
Ponhas isso no papel e não te enroles,
Quem é sincero apenas Quando pode.

- Quem, outra coisa me responda,
Dessa vez seja franco,
Ligas para as aparências,
Vives nesse engano?
- Eu não ligo para as aparências,
Só de vez em quando.
E tu, por que tão rápido te calas?
Não vais complementar a minha fala?
- Acontece que estou passando por crise.
Não sei se fico ou se me vou.
Preciso de ajuda, coisa boa no mundo
Nada restou.

- Escreve mais essa e depois nos vamos.
- Belzebu, não sei se bem entendi.
A trama se enreda e eu já me esqueci,
Pouco me lembro, e à muita custa.
Quem não liga para as aparências
Quando precisa de ajuda?
- Dinato, pois lhe digo mais um pouco,
Veja se comigo concordas,
Essa gente aí de cima
Já quase não se importa
Com nada nem com ninguém
Esquecem que, se pararem aqui embaixo,
Não lhes salvam seus vinténs.
- Desse tipo já vi muitos,
Até digo que os conheço bem.
Esse mal não deve ter cura
Se tem, esse povo não procura.
Só sei que enforcados pela tristeza,
Irão chorar ao receberem as sentenças
De morte, sofrimento e amargura,
Se na terra não fizerem algo que lhes valha
Muito mais do que suas infames fortunas.
Já cansados de tanto dizer sem ter nada para falar, Dinato e Belzebu voltam para as baixuras do inferno.

Um comentário:

Rosi Isabel disse...

Querida Lica (nossa Lissara)
Seu blog é lindo-belo!
Fiquei emocionada ao ler seus escritos.
Sabes que a escrita é muito importante para mim. Minha pesquisa de mestrado intitulei: Escrita: morte-origem em psicanálise.
Estou muito orgulhosa de ser sua tia.
Um abraço com carinho.
Rosi