segunda-feira, outubro 27, 2008

Incontável

O céu já ficava levemente avermelhado, e alguns tons de laranja e amarelo tomavam conta da noite que deixava espaço para a clareza de mais um belo dia de verão que amanhecia na praia deserta.
Lá, ao lado de uma grande pedra que lembrava as formas de arbustos de hortência, apenas um chalé de madeira enfeitava a paisagem. Por entre coqueiros e areia, ele se escondia. Eram apenas um banheiro pequeno e modesto, uma varanda cheia de flores e objetos talhados em madeira, uma cozinha com uma mesa, cadeiras, pia e um fogão à lenha, uma pequena sala para recepcionar as poucas visitas que até ali chegavam e um quarto com uma grande janela com vista para o interior da ilha; tudo isto emoldurado por tábuas cruas de madeira escura. Já era possível perceber o reflexo da luz que batia n’água do mar atravessando as frestas das paredes do casebre.
A taça de cristal, iluminada por um feixe de luz, já tinha seu interior repleto de cores diversas, o champagne que restava nela já não borbulhava mais, e a garrafa, ao lado, ficava mais quente, em oposição à baixa temperatura do balde de gelo onde se encontrava na noite anterior.
Uma flor lilás prendia seus cabelos negros encaracolados. O vestido vermelho, de sempre, a deixava de seios fartos, cintura fina, corpo torneado. Um corte lateral que ia do tornozelo até um pouco acima do joelho deixava aparecendo suas pernas bronzeadas e um tanto grossas. Uma flor violeta enfeitava a mesa da cozinha, na sala estavam, sobre os sofás, as capas bordadas à mão, na parte de fora, uma tocha iluminava a alvenaria da parte frontal da casa. Podia-se sentir o cheiro forte de tempero usado para o molho por todo o recinto. Em uma caixa de isopor estavam três garrafas de champagne envoltas por muitos cubos de gelo.
Ele parecia um pouco desajeitado, a camisa aberta e a bermuda pareciam deixar-lhe desconfortável. O cabelo loiro bem aparado, os olhos azuis e a fragilidade de seu corpo não combinavam com os chinelos de tiras largas que usava. O buquê cheio de vida colorida que trazia nas mãos para lhe dar de presente, acabaria na mesa ao lado dos pratos do jantar.
Sons de conversas inconseqüentes e rasas tomavam conta do ambiente por alguns momentos. O tilintar dos talheres era, via de regra, o ruído mais escutado naquela cozinha. Às vezes, se ouviam elogios aos pratos servidos. Mãos trêmulas, olhos inquietos, pensamentos escondidos e bocas ansiosas.
Os copos brindavam enquanto um vento quente anunciava a noite de calor que se aproximava. As garrafas rapidamente se esvaziavam.
Tudo parecia menos monótono, a vida, mais real, os sons, mais fortes, as cores, mais brilhantes, as sensações, mais intensas. Ao mesmo tempo, nada precisava fazer sentido, tudo se tornava resumido pelo momento. A vontade de que nada se movesse nem que os minutos passassem era visível nas rápidas e tímidas trocas de olhares.
O que antes estava parado, agora era inquietante. Sede, desejo, ânsia de ter o outro agarrado ao seu corpo. Mãos perdidas, olhos fechados, bocas se queimando. Incansáveis, vorazes, animais em choque buscavam a loucura. Infinito prazer.
O lençol bagunçado na cama, os travesseiros no chão, a janela aberta. Uma calcinha preta rendada se perdia na pequena imensidão possível apenas para aquele quarto. A camisa solta na sala já não o deixava mais desconfortável como no início da noite. O clarão da lua, que entrava passando pelas cortinas, amenizava a escuridão e deixava possível ver os sapatos à beira da cama, os corpos atirados sobre o colchão faziam o desenho do perfil de uma concha do mar. Nem os rostos, ainda suados, não mostravam toda a satisfação que sentiam. Os cabelos bagunçados eram um emaranhado de palavras maliciosas e carícias desmedidas. As bocas avermelhadas, que agora descansavam, permaneciam caladas depois de incontáveis juras de amor e de coragem que ambos teimavam em continuar a dizer. As mãos paradas já não mostravam a pressa e a gana do início da noite. Carinhos fortes cediam espaço para calmos roçar de pernas e de braços.
As costas arranhadas manchavam com pontos vermelhos o lençol azul claro, formando um contraste de cores que lembravam os corais de águas rasas em alto mar.
A maré descia, o mar acalmava-se, as ondas iam e vinham vagarosamente, cansadas do turbilhão de movimentos da madrugada.
Um susto.
O dia começava a trazer sua brisa, seu vento frio. As nuvens encobriam o céu contaminado pela poluição. Não se via o sol, nem cor alguma. Agora tudo se resumia a uma escala em cinza e preto que remetia à angústia e à solidão. Barulhos, agora já não mais da praia e do oceano, mas sim das obras, das ruas, do trabalho, do caos.
Ao lado de sua cama vazia, havia um bidê. Nele, estavam todos os remédios para deixá-la sobreviver à dor. Na parede, um relógio com as pilhas acabadas marcava a hora exata de sua morte.

Um comentário:

ninabt disse...

Apesar de tu ser uma prima ingrata vou passar aqui depois pra ler a nova postagem!
Bacci